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               O quilombo Mata Cavalo dá nomes e rostos a um longo processo de resistência. Formou-se a partir de uma doação feita em 1883 quando a proprietária da Sesmaria Boa Vida, Anna Tavares, viúva e sem filhos, deixou o seu legado para trinta e quatro escravos forros e cativos, parentes entre si. 

               A origem dessa sesmaria vincula-se ao processo de expansão da exploração aurífera a partir de Cuiabá (MT), com a descoberta de ouro no ribeirão Cocais, afluente o rio Cuiabá, em 1730, nas bordas do pantanal, distante três quilômetros da atual sede do município de Nossa Senhora do Livramento.  

          No entorno das terras doadas três outras áreas contíguas foram adquiridas por negros dessa sesmaria. Em 1872, Marcelino Paes de Barros adquiriu parte da vizinha Sesmaria Rondon.  Ele é um dos ancestrais dos moradores da Comunidade de Mata Cavalo de Cima.  A outra parte dessa sesmaria Boa Vida, foi adquirida, em 1888, por Graciano da Silva Tavares, um dos ancestrais da comunidade Mata Cavalo de Baixo. Em 1896, Vicente Ferreira Mendes adquiriu a área do ribeirão Mutuca e todas as suas vertentes, dando origem à atual comunidade do Mutuca.

              Assim se formou o Quilombo Mata Cavalo, contendo em si várias comunidades rurais negras, fundadas historicamente a partir de proprietários de terras nos moldes jurídicos de domínio titulado.  Essas terras ficaram conhecidas na região como “terras de pretos”. São seis as comunidades hoje existentes em Mata Cavalo: Aguassú, Ponte da Estiva, Mata Cavalo de Baixo, Mata Cavalo de Cima, Mutuca e Ventura Capim Verde, cada qual com sua Associação, território e liderança. 

            O Quilombo Mata Cavalo está ancorado, portanto, em três pilares; terra, parentesco e memória dos escravos da Sesmaria Boa Vida, seus ancestrais.

            Até a década de 30 essas comunidades viveram em relativa paz devido ao longo processo de estagnação e pauperização registrado no município de Livramento desde o final da escravidão.  Elas desenvolveram, ao longo do tempo, uma organização social ímpar, baseada em relações de parentesco, reciprocidade e trabalho comunal, perpassadas pela religiosidade.

            O direito a terra, desde então, é dado através do parentesco com os ancestrais, proprietários de terras, por eles denominados “troncos”.  O direito costumeiro também fixava os limites das áreas das famílias extensas e determinava as normas de uso da terra e dos recursos naturais. Não existiam cercas entre as áreas de uns e de outros, mas sim marcos que eram respeitados. 

            Apesar das pressões externas, houve um tempo de fartura. Criavam pequenos animais e, diversas famílias, gado bovino.  Algumas delas possuíam engenho de tração animal para produção de melado, rapadura e açúcar de barro.  Quem não tinha levava a cana para ser beneficiada nas instalações de um parente próximo. Nos alambiques, cachaça. Fabricavam farinha de mandioca e sabão; fiavam algodão e produziam redes, roupas e outros produtos; plantavam feijão, arroz, cana, banana, mandioca, milho, mamão, abóbora. 

            Além dos mutirões internos a cada uma das comunidades eram realizados outros, tanto entre elas quanto fora delas, em outras comunidades rurais negras do entorno.

            A maior parte da produção era para autoconsumo. Os excedentes eram transportados em carros de boi e comercializados nas cidades de Livramento, Várzea Grande e Cuiabá, onde vendiam, também, lenha e redes de dormir.  Ou trocavam por chinelos, chita, genovesa, chapéu, sabão e outros produtos.

            Eles realizavam muitas festas de santo, que duravam vários dias. No Mutuca se comemorava São Benedito, ocasião em que se apresentava a Dança do Congo. Em todas elas – marcadas pela fartura de bebida e comida - se dançava cururu e siriri. Dessas festas participam moradores de Cuiabá, Várzea Grande, Poconé e Livramento. Essas ocasiões festivas consolidavam os elos da cadeia de reciprocidade, tais como as relações de compadrio, alianças matrimoniais e políticas no seu interior.

            Com as políticas expansionistas do Governo Vargas, e a consequente supervalorização fundiária no Centro Oeste, as disputas pela posse das terras das comunidades de Mata Cavalo se acirraram, dando início de um tempo de privações e instabilidades.  Elas sofreram uma ofensiva grilagem para a qual não estavam preparadas, uma vez que não usavam cercas e valorizavam o direito costumeiro como instrumento suficiente para esclarecer dúvidas sobre os limites das terras. 

            O processo de expulsão foi deflagrado em 1938, quando Manoel Monteiro - político de Livramento, onde foi prefeito - adquiriu 200 hectares, dando início ao movimento de grilagem das terras de modo que, no final dos anos 40, a maior parte delas estava em suas mãos. Ele entrou com ação judicial de usucapião e, em 1953, a justiça lhe deu ganho de causa. Posteriormente ele parcelou as terras e vendeu-as.

            Por relacionar a perda contínua das terras ao analfabetismo Antônio Mulato, nos anos 40, solicitou à prefeitura de Nossa Senhora do Livramento uma professora para ensinar sessenta crianças do quilombo e entorno. Buscou, também, um espaço físico para o funcionamento da escola. Ironicamente, ele foi disponibilizado pelo grileiro de suas terras.  Mas, a professora acolheu somente vinte crianças, todas elas brancas.  Diante disso Mulato lutou e conseguiu que, em 1945, a prefeitura contratasse sua filha – D. Tereza - que estudara até a quarta série. As aulas eram ministradas na sua própria casa.

            De um modo geral a partir dos anos 1950 o processo de expulsão de posseiros, sitiantes e das comunidades negras rurais foi intenso na baixada cuiabana, onde as terras eram cobiçadas devido à existência de pastagens naturais.   Outras comunidades negras rurais do município de Nossa Senhora do Livramento, como Jacaré de Cima (Jacaré dos Pretos), perderam grande parte de suas terras.

            São inúmeros os relatos de violências praticadas pelos “novos donos” das terras, seus empregados e pistoleiros, com a participação ou omissão da justiça e da policia local.   Roças e casas foram incendiadas, chegando a ocorrer algumas mortes. Os moradores das várias comunidades de Mata Cavalo se viram diante de uma situação delicada entre ficar e resistir à violência ou abandonar suas terras. 

            Nem todos partiram. Cerca de trinta famílias resistiram ao processo de grilagem mantendo parte de suas terras, como os moradores do Mutuca; Miguel Apolinário, nas cabeceiras do córrego Mata Cavalo; Simão, na região do Aguassú.  Outras famílias, como as do Sr. Antônio Mulato e seus filhos saíram de Mata Cavalo de Baixo, local de maior pressão, decorrente da existência de ouro no subsolo, e foram para a região do Brumado.  Outros permaneceram na área como trabalhadores braçais. 

            A comunidade do Mutuca foi um expressivo baluarte da resistência contra o processo de expropriação iniciado na década de 1930 na figura heroica de suas mulheres.  Lideradas por Rosa Domingas de Jesus, elas interpunham-se entre suas casas e os jagunços, que praticavam assédio moral, cortavam arames das cercas das plantações e soltavam gado nas suas roças. Graças a essa resistência, eles conseguiram conservar parte se suas terras e, por extensão, a própria existência do Quilombo Mata Cavalo.

            As famílias expulsas passaram a trabalhar no meio rural ou deslocaram-se para as periferias dos municípios de Livramento, Várzea Grande, Nova Mutum e, principalmente, de Cuiabá, capital de Mato Grosso, cinquenta quilômetros distante. 

            Com o processo de expulsão pulverizaram-se festeiros, reis, rainhas, cururueiros, capitães de mastro e assim por diante. Contudo os vínculos entre os negros de Mata Cavalo e suas terras não se pulverizaram, muito menos os laços que eles estabeleciam entre si. Na diáspora constituíram nova territorialidade e reorganizaram a solidariedade grupal, as relações de parentesco, as práticas culturais sustentadas pela memória coletiva.  Era a sociabilidade de Mata Cavalo ressurgida, fênix negra, etnicamente reinventada.

            No final dos anos 50, a dança do Congo, originada na comunidade do Mutuca, estava praticamente extinta. Cesário Sarat da Silva tomou a iniciativa de reorganizá-la no Capão do Negro, em Várzea Grande, onde passou a viver. Pai-de-santo e benzedor, famoso pelo poder de cura das suas rezas e garrafadas, conseguiu reunir os dançantes – que moravam em diferentes municípios – e retomar a Dança do Congo.

            Duas décadas depois, as famílias dispersas começaram a reocupar suas terras. Antônio Mulato e a de sua filha Teresa Conceição Arruda voltaram do Brumado e, por volta de 1969, compraram duas áreas – de 120 e 60 hectares, respectivamente – nas terras que eram suas, por direito.  Tomás Couto adquiriu direito de posse, por usucapião, de 167 hectares às margens do córrego Aguassú.

            A partir da década de 70, as terras da região sofreram novo processo de valorização em decorrência das políticas integracionistas do governo militar. As pressões se acirraram contra as famílias que permaneceram na terra ou retornaram a ela.

            Cesário Sarat, nos anos 80, mudou-se para Livramento, onde ergueu a Casa de São Benedito e passou a fazer a Festa em seu louvor e a Dança do Congo. Conflito, resistência, religiosidade e festa misturam-se nesse retorno. A casa cumpria múltiplas funções: além de servir de moradia para ele e sua família, era também um lugar sagrado, destinado à louvação do santo; nela passou-se a guardar as vestimentas dos dançantes e materiais necessários à realização do Congo;  ela também servia de pouso para  muitos dos seus componentes nos dias de apresentação.

            Cesário mudou-se com sua família para as cabeceiras do córrego Mata Cavalo, em 1989, em razão de violências praticadas contra seus parentes próximos.  Lá iniciaram lavouras e ergueram barracos, que foram destruídos e reconstruídos, até que dois anos depois o proprietário ganhou ação de reintegração de posse e despejou a todos.

            Apesar de ter liderado ativamente o processo de retorno dos negros para Mata Cavalo, Cesário Sarat manteve-se na Casa de São Benedito, até a sua morte, no dia 19 de novembro de 2004, aos 74 anos, deixando o Congo como herança.

            Na disputa pela terra, eles entraram em contato com representantes do Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade, da Comissão Pastoral da Terra e do Grupo União e Consciência Negra (GRUCON), em Cuiabá. Assessorados por essas entidades, os familiares de Cesário realizaram levantamentos no cartório de Nossa Senhora do Livramento e no Instituto de Terras de Mato Grosso, sendo que neste localizaram o termo de doação feita por Dona Anna.

            Cesário Sarat protocolou um requerimento junto à Procuradoria Geral do Estado de Mato Grosso, em setembro de 1995 solicitando levantamento técnico para instruir os procedimentos de emissão do título dominial definitivo aos negros. A Procuradoria alegou falta de provas da existência de remanescentes de quilombos na área, o que dá início à longa sequência de paradoxos legais que caracterizaria a trajetória de Mata Cavalo. 

            Nesse mesmo ano eles criaram, no ano seguinte, a Associação Sesmaria Boa Vida – Quilombo Mata Cavalo (“associação mãe”), para representar juridicamente todas as comunidades junto aos órgãos públicos e para receber o Titulo de Domínio da área.  Essa associação foi presidida por Tereza Conceição Arruda até a sua morte, em 2011, aos 74 anos de idade.

            A escola, fechada há muitos anos, voltou a funcionar, em 1996, quando a prefeitura, atendendo ao apelo das famílias retornadas, possibilitou a existência da Escola Municipal São Benedito em Mata Cavalo de Baixo, ao contratar duas professoras, filha e neta de D. Tereza. Elas, em uma construção de palha, passaram a ministrar aulas dos anos iniciais do ensino fundamental, em classes multisseriadas.

            A intensificação do retorno para Mata Cavalo se deu com apoio dos movimentos sociais – especialmente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e do Grupo União e Consciência Negra (GRUCON) – com ampla cobertura jornalística. Aliados a famílias de sem terras, ocuparam espaços nas localidades do Aguassú, Estiva/Ourinhos, Mata Cavalo de Cima, Mata Cavalo de Baixo e Mutuca. Isso deu origem a duas comunidades: (1) Gleba União, formada por famílias de Sem Terras e (2) Aguassú, formada por Sem Terras e quilombolas.

            Se antes eles se identificavam com os sem-terra, nesse processo de luta passaram a assumir a identidade quilombola – enquanto sujeito de direito - como forma de luta pela terra, cientes que se tornaram de seus direitos, inscritos no artigo 68 da Carta Magna vigente e nos artigos 214, 215 e 216 que sinalizam a necessidade de proteção do patrimônio da cultura material e imaterial de tais grupos. As propriedades rurais das comunidades de Mata Cavalo, diversas entre si em suas origens, são subsumidas na categoria quilombo, em seu sentido jurídico-formal.

            Atendendo as reivindicações das comunidades de Mata Cavalo, o Instituto de Terras do Estado do Mato Grosso (INTERMAT), em 1997, constituiu um grupo de trabalho, com a participação de movimentos negros do Mato Grosso e representantes das comunidades, para verificar se eram ou não quilombolas, tendo por referência o conceito proposto pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Concluíram tratar-se de quilombolas e, portanto, com direito às terras pleiteadas. 

            Com base nesse parecer, o Governador do Estado de Mato Grosso (Dante de Oliveira) através do Decreto Nº. 2.205, de abril de 1998, reconheceu as comunidades de Mata Cavalo como remanescentes de quilombo.

            No ano 2000, a Fundação Cultural Palmares emitiu o título de reconhecimento de 11.722 hectares do Complexo Mata Cavalo. Mas, o Cartório de Registro de Imóveis de Várzea Grande recusou-se a registrá-lo tendo em vista que essa fundação não tinha competência para tanto.

            Com a intenção de reduzir o conflito, o Instituto de Terras de Mato Grosso (INTERMAT), através de acordos com novos proprietários, alojou os quilombolas em dois comodatos, um de 260 hectares, em Mata Cavalo de Baixo e outro de 100 hectares em Mata Cavalo de Cima.   As normas previstas no acordo impediam construção de casas de alvenaria, abertura de poços de água, criação de gado bovino, plantio de culturas perenes e, principalmente, a ocupação fora dos limites acordados.

            Em 2002, eles romperam com tais acordos que os mantinham reféns em suas próprias terras. As relações entre as famílias do Mutuca e as famílias sem terra, que no início eram amistosas, foram interrompidas, dando inicio às hostilidades entre seus lideres.  No ano seguinte Aguassú se dividiu em duas comunidades: Aguassú de Baixo, constituída por famílias de quilombolas e Aguassú de Cima formada por famílias de sem terras.

            Nesse mesmo ano, foi construído o prédio da Escola Estadual Rosa Domingas de Jesus, com auxilio financeiro do Fundo do Canadá, na comunidade do Mutuca. De alvenaria, a construção conta com quatro salas de aula, banheiro e cozinha. Ela recebeu os alunos da Escola Municipal São Benedito, quando esta foi interditada, em razão de denúncias relativas à precariedade na sua estrutura física.

            Em 2003, os quilombolas passaram a ocupar outras áreas, enfrentando forças policiais que se faziam presentes em função de concessão de liminares para reintegração de posse.  Em meio ao conflito eles foram retomando suas terras de forma que, em 2009, passaram a deter em torno de 80% delas, invertendo a situação registrada nove anos antes.

            O INCRA, em 2003, passou a ser responsável pela regularização das terras quilombolas.  Em agosto do ano seguinte esse órgão deu início ao processo de demarcação e titulação do quilombo, resultando em uma área de 14.700 hectares, que inclui todas as terras doadas, compradas ou arrecadadas.  Esse órgão registrou 418 famílias distribuídas em seis comunidades representadas, para fins jurídicos, pela Associação Sesmaria Boa Vida – Quilombo Mata Cavalo (“associação mãe”).  

            Em 2009, o presidente Luís Inácio Lula da Silva assinou decretos de desapropriação de terras quilombolas, dentre elas as de Mata Cavalo. Porém, o prazo de dois anos para o ajuizamento da ação de desapropriação ou realização de acordo caducou.

            A essa altura vários processos judiciais nas esferas federal, estadual e municipal haviam sido impetrados contra eles, inclusive os de reintegração de posse. Eles viviam em barracos provisórios por causa dos inúmeros despejos que ocorriam, apesar dos desfechos favoráveis das Ações impetradas pelo Ministério Público Federal na Justiça Federal de Mato Grosso em seu favor. 

            Esta é uma comunidade à espera. Ainda hoje os quilombolas aguardam a liberação total de suas terras, o que depende de processos de indenização dos aproximados cinquenta ocupantes, que continuam usando as terras e degradando o ambiente, além das comunidades de sem-terra.   Enquanto isso os quilombolas vivem em espaços reduzidos, em condições precárias, sem saneamento básico e posto de saúde. 

            Ainda assim, Mata Cavalo apresenta uma rica agenda cultural onde se destacam as festas.  Há dois tipos de festas: as que envolvem somente os membros das próprias comunidades; outras mais abrangentes e mais conhecidas regionalmente. Algumas festas têm caráter predominantemente profano, como as comemorações organizadas pela associação, os aniversários e a Festa da Banana.

            Dentre as festas profanas destaca-se o aniversário de Antônio Benedito Conceição, o Antônio Mulato, nascido em 12 de Junho de 1905 e membro mais velho do quilombo de Mata Cavalo, cuja história cruza-se com as agruras do sistema escravista. Ele conheceu a maioria dos primeiros herdeiros de Mata Cavalo.

            O eixo central do extenso calendário cultural, contudo, são as festas de santo.

            Comida farta e gratuita é uma das características mais notáveis das festas de Mata Cavalo, o que exige grande esforço econômico e mão-de-obra dos festeiros e seus ajudantes. Na sucessão de festas, as comunidades consomem o que, eventualmente, poderia ser destinado ao mercado.

            A Festa de São Benedito em Mata Cavalo de Cima, uma das mais famosas, reúne diferentes grupos, inclusive quilombolas provenientes de Barra dos Bugres e de Cuiabá, assim como das comunidades de Jacaré de Cima e de Cabeceira de Santana, também situadas no município de Livramento.

            As festas reafirmam os laços de amizade e parentesco, ao mesmo tempo em que garantem, no campo simbólico, a existência de uma sociedade muito mais abrangente do que a que existe concretamente na área.  Elas cumprem dupla tarefa no espaço fronteiriço: por um lado, revelam-se conciliadoras, capazes de amainar os conflitos e divergências entre as comunidades e dar forma ao coletivo; por outro lado, elas criam o efeito externo de confrontar o outro. A comunidade que os olhares externos encontram é mais exuberante do que o usual e tem contornos mais uniformes.

             A Dança do Congo, realizada em Livramento, juntamente com a Festa de São Benedito – sob a direção de Quirino, filho de Cesário - conta hoje com cerca de quarenta dançantes, oriundos de diferentes espaços: bairros periféricos de Cuiabá, Várzea Grande, Poconé, Diamantino, Cáceres. Quanto aos moradores de Mata Cavalo, há apenas aqueles que, sem pertencer ao corpo fixo do grupo, participam da dança durante a festa de São Benedito para pagarem promessas feitas ao santo.        Há estreitos vínculos entre a festa e a capacidade de resistência dos quilombolas sinalizando para a importância da dramatização (festiva) das identidades na produção e reprodução de grupos sociais ameaçados pelas forças hegemônicas.

            A memória desempenha papel fundamental na reinterpretação do presente, de acordo com as experiências, sentimentos e reflexões dos seus protagonistas. Essas reflexões, conflitos e lutas passam pela educação escolar.

            As atividades escolares concentram-se, desde meados de 2012, na Escola Estadual Professora Tereza Conceição de Arruda, que conta com seis salas de aulas, banheiros, salas administrativas, sala de informática, cozinha com refeitório e quadra poliesportiva coberta. Em 2016, ela atendeu 210 estudantes, em dois períodos. No período matutino são ofertadas a Educação Infantil e Ensino Fundamental I; no período vespertino Ensino Fundamental II, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA).

            Além das disciplinas comuns que compõem o currículo da educação básica, são ministradas outras três presentes na matriz curricular quilombola. São elas: Tecnologia Social (TS), que tem por objetivo desenvolver técnicas de baixo custo, voltadas para resolução de problemas sociais; Práticas Culturais e Artesanato Quilombola (PCAQ), que busca a valorização do artesanato; e Práticas Agrícolas Quilombola (PAQ), voltada para a valorização da agricultura tradicional. Através de uma educação que se quer diferenciada, buscam afirmar valores étnicos e, ao mesmo tempo, formar a consciência negra dos jovens, que pensam para si novos horizontes.

            A escola busca, também, contribuir para a valorização da cultura local e para o combate ao racismo através dos seguintes projetos: Leitura de Contos e Histórias sobre Negros/as, Hop Quilombola, Mulheres Negras Guerreiras, Feira de Artes e Casa da Cultura.

            O projeto Hop Quilombola trabalha, através da dança, o pertencimento e o orgulho de ser negro, representando uma forma de luta contra a discriminação e o preconceito. Por meio deste projeto os estudantes levam para fora do quilombo a sua história de luta.

            Os poucos empregos que existem em Mata Cavalo são vinculados à escola. Dos vinte e oito funcionários contratados apenas doze são quilombolas. Mas, eles estão formando quadros próprios para ocupar todas as vagas. Alguns sonham com sua inserção no mundo do trabalho como passaporte para a independência financeira e reconhecimento social.  Outros buscam nas universidades, através de sistemas de cotas ou não, novos horizontes para as suas vidas.

            Os conflitos e disputas passam pela escola. De um lado existe a necessidade dos jovens de situarem-se num mundo competitivo e cheio de novidades ao ritmo das inovações tecnológicas e das inúmeras possibilidades que as cidades oferecem. De outro, as pessoas mais velhas voltadas para um passado cheio de significados, perpassadas no tempo e no espaço por elementos da tradição escrava. 

            A tradição e os costumes herdados dos antepassados constituem um dos elos formadores de suas identidades. Entretanto, para os jovens, a tradição possui outras configurações que respondem a seus próprios anseios e às necessidades de afirmação em um mundo marcado pela modernidade, por constantes transformações e pelas incertezas que delas se originam.

 

Edir Pina de Barros (antropóloga)

fevereiro de 2.018

 

Edir Pina de Barros (Flor do Cerrado)

Edir Pina de Barros (Flor do Cerrado)
Enviado por Edir Pina de Barros (Flor do Cerrado) em 25/11/2021
Alterado em 25/11/2021
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