Escreve
como quem corta carne,
quem esquarteja sonhos,
retalha
a vida
para vê-la por dentro.
Com precisão
tudo examina
e atira fora
as vísceras
Disseca
a base conjuntiva
para chegar ao osso
matéria
que fica
e se mineraliza.
II Engenho
Procede como quem corta cana a decepar as palhas, ponteiros e brotos para passar no engenho.
Gestos precisos suor e lâmina alisa os gomos processa.
Despreza a bagaceira toda para reter a essência garapa que fica no tacho da poesia.
III Engenheiro
Planeja o esquema estrutural pilares, alicerces, no espaço da mente a desenhar poemas
Prepara o solo, retira entulhos, detritos, refugos, calcula.
Constrói no solo da linguagem deserta de lirismo em versos concisos paisagens de asperezas.
IV Bagaço
Em terra de Severinos de justiça desprovida padecem homens-meninos e de sal é feita a lida.
A vida é suor e cana, feita de fome e cansaço, que seca a seiva e profana o corpo em dor, um bagaço.
Engenho que mói, tritura a cana já decepada não mói o osso, a estrutura, na roda dura e dentada.
O osso na terra fica a reclamar seu espaço, não decompõe, petrifica, fica mais duro que aço.
Por isso palavra é pedra que medra na sua lavra.
V Faca afiada
Entre inspiração e escrita o gume da faca fria transmuda palavra em pedra (não seixo que o tempo alisa) palavra-pedra-poesia que de cada aresta medra.
A mesma e precisa faca que extirpa brotos de cana e a carne que encobre o osso rabisca e cimenta versos na estrutura desenhada do planejado arcabouço.
Da extrema mudez da pedra extrai o grito que corta canaviais e desertos.
VI Palavra-pedra
O poeta escolhe qual lado que quer cantar nesse mundo uns cantam o mel do caldo de cana que engenho extraí, outros cantam sal que fica do suor que se junta ao humo.
João Cabral de Melo Neto dissecou a carne viva da miséria do nordeste para enxergar desde o avesso, na parte substantiva o osso que guarda o verso.
Sal e pedra, osso-palavra que o tempo mineraliza no latifúndio da escrita.
Antonio Baltazar Gonçalves Os 3 primeiros ('anatomista', 'engenho' e 'engenheiro') descrevem com perfeição, e nos mesmos moldes, as habilidades de João Cabral em construir sentidos com palavras desgastadas pelo uso ou pela miséria na História... Como ele, vc maneja bem demais a 'faca' nesse conjunto de poemas e talha, no osso ou na pedra, com aquela precisão seca mas comovente, um lugar já desenhado mas esquecido dentro da gente... Entre os poemas 'faca afiada' e 'palavra-pedra' há um diálogo interessante que aponta ser a escrita instrumento que dá vida ao que parece inanimado (pedra, seixo, carne, poeira e canavial). No IV poema 'bagaço', o cenário se abre para mostrar as origens do escritor sem contudo delimitá-lo. Pelo contrário, no poema 'o poeta engenheiro' é enaltecido nos próprios termos e a vastidão da arte dele você nos revela esquadrinhando alguns recantos com o cume daquela faca afiada... Adorei! Obrigado por compartilhar, Edir!! (Facebook, 20/05/2017)
Edir Pina de Barros (Flor do Cerrado)
Enviado por Edir Pina de Barros (Flor do Cerrado) em 29/05/2017
Alterado em 30/05/2017