Os Paresí e a sua Sociedade
Os Paresi – povo de língua Aruák – autodenominam-se halíti (gente, povo). Internamente reconhecem outra classificação, à base da qual se distinguem em subgrupos que, historicamente, falavam dialetos distintos e habitavam territórios contíguos, com limites definidos.
Segundo os seus mitos de origem (Schmidt, 1943; Steinen, 1940; Pereira, 1986; Roberto Machado, 1994; Costa, 1985), um grupo de irmãos do sexo masculino saiu do interior da terra, por entre as fendas das rochas que existiam no rio Sucuriu-winã (Sucuruína ou Ponte de Pedra, tributário do Arinos). Primeiro saiu Wazare, o irmão mais velho, que orientou os outros: Kamazo, Zakalo, Zalóia, Zaolore, Kóno, Tahóe e Kamaihye. Esses irmãos contribuíram, de formas diversas, para a conformação do mundo Halíti. Eles se casaram com as filhas de Atyahiso, o rei das árvores. Wazare e Kamihye não tiveram filhos. Mas os demais deixaram seus filhos sobre a terra, dando origem aos subgrupos Halíti, categoria mais inclusiva.
Wazáre, o irmão mais velho, nominou os rios, os pássaros, as flores, as árvores, as cabeceiras, pré-existentes. Ele também destinou a cada irmão um território específico, dando origem aos subgrupos endogâmicos.
A organização social Halíti tem suas coordenadas expressas nesse mito de origem. Idealmente sua sociedade é formada por grupos de irmãos que se casam com outros grupos de irmãs, formando grupos locais sustentados em uma identidade e territorialidade.
Historicamente esses territórios contíguos abrangiam o extenso planalto situado das cabeceiras dos rios Arinos e do Paraguai, até as cabeceiras dos rios Guaporé e do Juruena. Segundo a historiografia regional, os Waimaré ocuparam a região dos rios Verde, Papagaio e Sacre; os Kozárini no divisor de águas dos rios Juba, Cabaçal, Jauru, Guaporé, Buriti, Juruena e os Kaxiniti viviam a leste, no vale do Sumidouro, afluente do Arinos e do Seputuba, tributário do Paraguai.
A história das relações entre os Paresi e os diferentes segmentos da sociedade envolvente remonta há 250 anos, aproximadamente.
As primeiras referências sobre eles datam do último quartel do século XVIII. Antonio Pires de Campos, preador de índios para a escravização, registrou em seu relatório datado de 1723, porém referente ao ano de 1718, que eram numerosos – “infinitos, que não se podem numerar” – e que em um dia de viagem era possível passar 10 ou 12 aldeias. Viviam da agricultura e da caça. Formavam aldeias de até 30 casas. Chamou-lhe a atenção o fato de serem agricultores incansáveis, pacíficos e de fácil trato (Campos, 1862: 542).
A atividade mineradora, que sustentou a economia regional até o último quartel do século XIX reduziu a população Paresi de forma crítica. Steinen, que percorreu a região, informou que “milhares de índios foram arrebatados pela voragem da morte, e somente os que souberam fugir à civilização e conversão gozam ainda de alguma saúde” (1940:52).
A subsequente extração da borracha e da poaia - que vicejavam em seu território histórico, nas matas que circundavam as cabeceiras e acompanhavam os rios - resultou em um quadro de extrema violência. Suas terras foram palmilhadas no sentido leste/ noroeste (Diamantino/ Juruena) e sul/ norte (Cáceres Tapajós). Trabalhadores Paresi do seringal do Bacaval foram assassinados e a aldeia Kotecerô-suê (hoje conhecida como Aldeia Queimada) foi incendiada (Rondon, 1915:18).
No início do século passado a linha telegráfica Mato Grosso-Amazonas, construída pela Comissão Rondon, sob a chefia de Rondon, atingiu o povo Paresi como um todo: dispersão e, até mesmo extinção, de grupos locais, afastados de seus territórios originais; inviabilização de manutenção de sua organização territorial; introdução de novos valores e padrões de socialização. Ou seja, repercutiu na sua organização social de forma drástica!
A partir da década de 1940 a atuação missionária vem se somar às demais ações de cunho colonialista.: jesuítas implantaram, na antiga estação telegráfica de Utiariti, um internato destinado aos povos indígenas da região (Irantxe ou Manoki, Rikbaktsa, Paresi e alguns grupos Nambikwára). Ele foi desativado em 1969. A partir da década de 60, registra-se a presença de missionários protestantes da South American Indian Mission (expulsa posteriormente pelos próprios Paresi) e do Summer Institute of Linguistics (Costa, 1985), que atua em algumas de suas aldeias, ainda hoje.
Levas de novos migrantes chegaram nas terras Paresi com a abertura da BR-364, a partir da década de 60, vindos do sul do país. Conflitos de várias ordens marcaram, a partir de então, as relações entre esse povo e os fazendeiros que iam se estabelecendo em seu território.
Somente em 1982 a Fundação Nacional do Índio passou a atuar entre eles utilizando-se de recursos do “Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil” (Polonoroeste). A implantação de Postos Indígenas se dá a partir de 1983, nas aldeias Formoso, Salto da Mulher e Cabeceira do Osso. Nessa época a tuberculose abatia a sua população.
O precipitado de tão longa história de contato, além das perdas territoriais e da depopulação, foi a extinção de vários subgrupos Paresi: Kaxiniti, Warére e Káwali. O subgrupo Kozárini constitui hoje a maior parte da população. Uma parcela deles vive em cidades, sobretudo Cuiabá (vide Machado, 1994).
Os Paresí vivem em nove Terras Indígenas situadas no Chapadão dos Parecis, Mato Grosso. Os Paresi, que em 1985 somavam aproximadamente 600 indivíduos (Costa, 1985), hoje somam cerca de 1.500 pessoas, vivendo em mais de 30 aldeias, caracteristicamente de baixa densidade demográfica. Elas se situam no cerrado, nas proximidades das cabeceiras dos rios onde o solo favorece a agricultura.
O termo utilizado para se referir à aldeia é Wénakalatí , um espaço que é “lugar de morada”, que pré-existem aos grupos sociais que ali venham a fixar morada, direito que pertence somente àqueles que têm uma relação histórica com o espaço, construída através de seus antepassados. Wazaré, o mais velhos dos irmãos ancestrais, demarcara os locais apropriados para a habitação de cada um dos subgrupos. Cada aldeia está referenciada a um território com limites bem definidos – via de regra acidentes geográficos – onde se encontram as roças, as áreas de caça, pesca e coleta (1985:110-113)..
A aldeia constitui uma unidade sociológica significativa ente os Paresi e seus moradores formam um grupo social cujas relações são marcadas pela solidariedade característica da relação entre “os parentes verdadeiros”. Isto é, aquelas pessoas que podem traçar entre si laços de consangüinidade pelas linhas materna e paterna, como orienta o seu sistema de parentesco do tipo Iroquês (dravidiano).
As aldeias têm uma relativa autonomia política e econômica, possuindo direitos exclusivos sobre os recursos de seu território, ainda que mantenham entre si uma permanente interação social, através de cooperações mútuas nos trabalhos, como nas derrubadas e aberturas de roças, nos rituais, nas trocas matrimoniais. Elas tendem à endogamia em três níveis: subgrupos, parentes próximos e de grupo local. E também à cisão a partir de um dos grupos de irmãos que se aliam e fundam uma ou mais novas aldeias, cada qual com seu líder.
Uma aldeia, idealmente, é constituída por duas casas grandes, comunais – háti – e uma pequena, onde são guardadas as flautas sagradas. Há, contudo, em função das mudanças ocorridas, inclusive ambientais, casas construídas no estilo dos regionais pauperizados, feitas de pau-a-pique barroteado, com cobertura de palhas, com paredes de adobe, de madeira.
Háti – a casa – tem formato elíptico, com duas portas nas extremidades, uma voltada para o nascente e outra para o poente. Seu tamanho indica o prestígio de que goza o grupo. Cada casa corresponde a um grupo doméstico formado por indivíduos pertencentes a três gerações: um casal com filhos e filhas solteiros, suas filhas e/ ou filhos casados e uma terceira geração formada por netos e netas. Contudo, há casas com duas gerações ou quatro
Claude Lévi-Strauss propôs a aplicação da noção de “casa” como instrumento heurístico para compreender sociedades que, como a Paresi, não se deixam definir como famílias, clãs ou linhagens. Mais que simples edifícios, “são verdadeiros sujeitos de direitos e deveres”. Ela não se reduz a uma habitação. Tendo por referencial empírico a sociedade Yurok, da Califórnia, esse antropólogo comenta que “ocupantes hereditários, agnatos ou cognatos, aos quais se agregam parentes mais afastados, aliados, por vezes clientes, exercem seu controle sobre bens materiais e imateriais”, tal como acontecia às casas dos tempos medievais (Lévi-Strauss, 1986:186).
Como afirmara Romana Costa, em sua dissertação de mestrado, a casa é um centro social fundamental. “Nela se realiza parte das festas de chicha, as meninas púberes ficam em reclusão, se prepara a comida, tem-se relações sexuais, nascem os filhos, enterram-se os mortos. É também o palco de todas as decisões. Cotidianamente os homens se encontram nas casas, à noite, para conversar sobre as atividades realizadas e planejar viagens, festas, assim como os próximos trabalhos a serem realizados. Grande parte das horas livres são passadas em seu interior, nas redes” (Costa, 1985:123). Ou seja, háti, a casa Paresi, concentra uma série de elementos dos ciclos fundamentais da vida.
Útero e túmulo, hatí é o local onde nascem os novos membros dessa sociedade e onde se enterram os seus mortos.
Edir Pina de Barros, 2006
Desenho: Naomi Onga
CAMPOS, Antonio Pires de – Breve relato que dá o Capitão... do gentio bárbaro que há na derrota da viagem das minas do Cuyabá.....Rio de Janeiro, Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 25 1862: 437-449.
COSTA, Romana M. Ramos – Cultura e Contato: um estudo da sociedade Paresi no contexto das relações interétnicas. Rio de Janeiro, Museu Nacional/ UFRJ. Mestrado em Antropologia Social, 1985.
Lévi-Strauss, Claude – A Noção de Casa. Minhas Palavras. São Paulo, Editora Brasiliense, 1984: 185-187.
Pereira, Adalberto H. – O Pensamento Mítico Paresi. São Leopoldo (RS) . Instituto Anchietano de Pesquisas. Volumes I e II, 1986.
Machado, Maria Fatima Roberto – Identificação e delimitação da Área Indígena “Estação Rondon” ( Estação “Parecis”) – Diamantino/ MT.Portaria FUNAI/BSB/308/93-06 – abril de 1993. Maldi, Denise (Org.). Direitos Indígenas e Antropologia: Laudos periciais em Mato Grosso. Cuiabá (MT), EdUFMT, 1994: 243-292.
Machado, Maria fatima Roberto – Índios de Rondon e as linhas telegráficas na visão dos sobreviventes Waáimare e Kxíniti, grupos Paresi. Tese de doutorado em Antropologia Social. Museu Nacional/ UFRJ, 1994.
Rondon, Cândido Mariano da Silva – Relatório apresentado à diretoria Geral dos Telégrafos e à Divisão de Engenharia (G-5) do Departamento de Guerra. Comissão Rondon, Publicação nº.1 , Rio de Janeiro, 1915.
Schmidt, Max – Los Paresis. Revista de la Sociedad Científica del Paraguay, 6 (1), 1943: 1-226.
STEINEN, Karl von den – Entre os Aborígenes do Brasil Central. Separata numerada do Arquivo Municipal, nº. 34-58. São Paulo, Departamento de Cultura, 1940.
* Todos os meus textos são encaminhados para registro de autoria na Biblioteca Nacional
* Imagem -arte - Naomi Onga