Textos


O “CHIFRE” (Meus mestres indígenas II)


         
Certa vez, quando voltei à aldeia na qual morava, fui abordada por um indígena que se declarava muito saudoso de mim. E repetira várias vezes:
          - Estou com saudades de você!
          E eu lhe respondi que também estava com saudades, mas que havia chegado e a saudade se fora...
          Insistentemente ele repetia que estava com muitas saudades de mim. Comecei a me encabular com aquilo e pedi a ele que falasse na língua comigo. E ele me falou então algo que pode ser mais ou menos traduzido assim:
          - Quero “transar” com você!
          Por um instante fiquei muda, desarmada e perplexa. Mas logo argumentei:
          - Mas como? Não dá, não posso...
          E então me lembrei de um argumento que considerava forte:
          - Você é um grande amigo de meu marido. Não devemos traí-lo, colocar-lhe um chifre.
          E ele respondeu:
          - Chifre? Chifre é coisa de “branco”. Nós não temos isso aqui não! Atravessei o rio sou solteiro!
           Foi difícil para mim me livrar daquela situação constrangedora. Na verdade fui salva por meu companheiro que chegara...
          Depois refleti que precisava estar mais atenta às formas de se pensar a sexualidade e o parentesco. Fui reler minhas anotações, o clássico livro intitulado “A Vida Sexual dos Selvagens”, acerca dos trobriandeses do Pacífico Ocidental, do grande Malinowski e rever minhas posturas etnocêntricas. Sim, etnocêntricas!       
          Como pudera eu, antropóloga, pensar que o “chifre” é um conceito universal?
          O “chifre”, meus amigos, como tudo que é humano é uma construção sociocultural. Não podemos transpor para outros contextos nossos conceitos. Sabia que a palavra saudade não tem correspondentes em francês e espanhol? E que nem sempre quer dizer a mesma coisa quando utilizada por outrem?
          Pois é! A transposição de uma palavra de um contexto sociocultural para outro pode gerar novos conteúdos semânticos. Tudo depende da clivagem sociocultural. A antropologia se aplica aos fatos mais comezinhos da vida cotidiana

Edir Pina de Barros (Flor do Cerrado)
Enviado por Edir Pina de Barros (Flor do Cerrado) em 15/12/2008
Alterado em 19/12/2008


Comentários